Entrevistas

À frente do MerC’afro, Luciane Reis conta os desafios para tornar o Brasil um país mais igual

No último dia 13 de maio, comemorou-se os 129 anos da abolição da escravatura no Brasil. Mas na prática, não há muito o que celebrar. Entre os diversos indicadores que provam que a população negra brasileira ainda sofre desafios para superar a gritante desigualdade que assolam o País, o empreendedorismo também não está imune. Ainda que seja maioria (51%), os empreendedores negros têm menores oportunidades de negócios e de oportunidades, já que apenas 29% conseguem empregar pelo menos uma pessoa, de acordo com levantamento do Desenvolvimento Social da Divisão de Gênero e Diversidade ​do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

Ser dono do próprio negócio é o caminho apontado por Eugene Cornelius Junior, chefe do escritório de comércio internacional da SBA (Small Business Administration), agência do governo dos Estados Unidos que oferece serviços de apoio à pequena e média empresa, para ajudar a diminuir a desigualdade racial. No entanto, até para começar, a população afro-brasileira enfrenta mais desafios: eles têm crédito negado três vezes mais em comparação aos brancos. É neste contexto que o trabalho de Luciane Reis ganha tanta importância.

Natural e ainda moradora das periferias de Salvador, Luciane define-se como uma mulher persistente. Aos 37 anos, ela conta que já foi servidora pública, mas hoje está à frente do MerC’afro, agência de fomento ao desenvolvimento de negócios locais e étnicos, que tem como principal objetivo extrair riqueza do nada.

Primeiras superações

Mesmo que Salvador seja considerada um verdadeiro centro da cultura afro-brasileira, a questão racial se faz presente. Dos 345 mil desempregados na região metropolitana e capital baiana, 323 mil são negros. “Metade das pessoas da minha comunidade está no mercado informal, trabalhando nos sinais. E quem não está nos sinais é camelô”, observa.

A própria Luciane sentiu, anos atrás, o preconceito na pele. Quando tentou buscar o seu primeiro emprego, em uma famosa rede de pizzarias. “Fui recusada no processo seletivo para ser caixa por ser negra”, continua.

Para se inserir no mercado de trabalho, ela decidiu seguir os passos da mãe, que era empregada doméstica. “Minha mãe não deixou. Disse que eu não podia manter o ciclo de humilhação que ela tinha passado. Para mim foi o primeiro estalo de que eu tinha de mudar minha trajetória. O segundo foi quando meu pai ficou doente e tivemos de andar mais de uma semana atrás de hospital”.

Uma das tentativas de mudar a própria realidade e também a de tantos outros negros foi a graduação em Publicidade. Luciane queria empoderar por meio da imagem. “Ia para casa a pé todos os dias, do Pelourinho para Saramandaia. Só tinha dinheiro para comer cachorro quente e biscoito da Parmalat. Quando se vem de economias vulneráveis, as dificuldades são inúmeras e a alternativa é se organizar em redes. O curso de Publicidade foi importante para descobrir novos mundos, e principalmente entender o que é negado a esse modelo de empreendedor e cidadão. As dificuldades me ensinaram a tirar esta riqueza de economias vulneráveis, a exemplo de custear paguei a graduação trançando o cabelo das meninas da faculdade”, lembra.

Novas possibilidades

Luciane não conseguiu se encaixar nos padrões do mercado publicitário e, por isso, investiu na carreira pública durante dez anos. Mas, em busca de novos caminhos, ela questionou o que queria fazer na vida e percebeu que o rumo era o empreendedorismo. Tomou a decisão em 2014, quando começou a construir a MerC’afro, mas em 2015 foi surpreendida pelo desemprego.  “Foi quando tomei coragem para construir a Luciane que estou construindo agora: uma mulher que não tem medo de arriscar, sem medo do novo. Acredito muito no que quero e estou fazendo para a minha vida”, pontua.

Assim, a agência de Luciane ajuda pequenos empreendedores a desenvolver negócios de baixo custo, a partir de estratégias de comunicação e estudo de potencialidades. “Por exemplo: marcenaria. Podemos pensar o que a empreendedora tem de recurso, como mão de obra, articulação e demanda. Promovemos cursos e consultorias para que ela chegue aonde quer chegar. E apontamos alternativas. Neste exemplo, ela pode trabalhar com bioconstrução.”

O retorno financeiro vem dos próprios empreendedores, que pagam pela consultoria. Luciane também foi acelerada pela Intento. No entanto, o além do financeiro, a autoestima é uma das principais dificuldades que ela enfrenta no dia a dia da baiana. “Tenho frases motivacionais espalhadas em todos os cantos da casa. Mas me vejo como uma pessoa que está fazendo a diferença no País a partir do debate no étnico. Você pode sim construir riqueza a partir do nada, pois trabalho com a economia de abundância a partir de todas as dificuldades que vivi até hoje”.

Por fim, como sonhos, ela diz que são simples. “Primeiro quero ser professora universitária. Quero construir ações que melhorem as condições de vida da população negra. Quero ser uma referência que pensa negócio de desenvolvimento econômico para economia frágil. Só nos desenvolvemos quando desenvolvemos outras pessoas”, conclui.

Camila Bez

Jornalista especialista em contar histórias de superação. Feminista, sonha em criar um mundo mais igualitário e justo para as mulheres por meio da informação e do empoderamento econômico.

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